31 março 2007

A transição de Gabriel

No primeiro álbum a solo após ter decidido abandonar os Genesis, Peter Gabriel revelou o caminho que pretendia seguir. Em vez de prosseguir na exploração do rock progressivo de que foi um dos mais talentosos protagonistas, Gabriel virou-se para a composição de temas mais simples, dando concretização àquilo que na altura lhe ia na alma. Recordo-me de o antigo vocalista e líder dos Genesis ter confessado, numa entrevista feita depois do anúncio da sua saída da banda de que foi fundador, que estava farto de fazer concertos para audiências sentadas. O primeiro disco de Peter Gabriel ainda fazia referência ao seu ofício anterior. A fantasia de Moribund The Burgermeister poderia perfeitamente ter integrado um álbum dos Genesis e o mesmo se deve dizer da atmosfera épica de Down the Dolce Vita. Mas a estética de Solsbury Hill já apelava noutro sentido, assim como o hard-rock de Modern Love com o seu riff de guitarra bem musculado. Peter Gabriel I acaba por ser um disco de transição entre o universo fantástico dos Genesis e o minimalismo electrónico que havia de surgir anos mais tarde no percurso do seu autor. Um regresso a estas paragens tem mais alguns pontos altos: Humdrum, os blues de Waiting For The Big One e o cair da cortina com Here Comes The Flood.

30 março 2007

Mais do que um simples adeus

Gostava de ter assistido a este concerto dos 10.000 Maniacs, integrado na série Unplugged, iniciativa da MTV que colocou diversos músicos sob o desafio de tocar ao vivo sem outros recursos habitualmente disponíveis que não os instrumentos acústicos. Aqui e ali houve alguma batota, mas nada capaz de desvirtuar os objectivos do projecto. Em geral, os resultados foram positivos, mas nem sempre inesperados. Para mim, não foi esse o caso da actuação dos 10.000 Maniacs. Os discos de estúdio da banda apresentam um som cuidado ao pormenor, cristalino como a voz de Natalie Merchant, o que, por vezes, se torna um pouco fastidioso, como sucede em In My Tribe. Em MTV Unplugged, a banda soa de forma genuína e as excelentes canções que foram escolhidas para o alinhamento ganham muito com esta situação, despidas das roupagens mais pop e remodeladas de acordo com sonoridades mais próximas da folk. Há quem diga que, tratando-se do derradeiro disco gravado com Merchant, se tratou apenas de uma forma digna de dizer adeus. Estou em desacordo. MTV Unplugged é, para mim, um dos grandes discos dos 10.000 Maniacs e apenas considero lamentável o facto de não estar acessível uma versão em DVD.

29 março 2007

Carpe diem

As limitações de espaço nos velhos 33 rotações obrigavam os músicos a fazer escolhas entre o que incluir e o que deixar de fora quando se trava de finalizar os álbuns. Muito material com interesse foi ficando de fora dos repertórios oficiais, mas também é certo que o que foi rejeitado era muitas vezes de qualidade inferior ao que mereceu figurar nas edições originais. Isso pode ser facilmente constatado através da audição de temas desprezados mas que, agora, são integrados nas reedições em CD ou em discos que têm por objectivo reunir esse material, assim como temas que foram lado B em singles e que nunca tiveram a oportunidade de entrar no alinhamento de um álbum. B-Sides and Otherwise, dos Morphine, é um destes casos. Inlcui versões ao vivo de temas já conhecidos no seu formato de estúdio e algumas outras curiosidades que foram ficando de parte. É um bom disco, sem dúvida, e uma pequena consolação para quem lamenta a morte prematura do líder da banda, Mark Sandman, que privou de novas propostas os apreciadores de um dos músicos mais disruptivos que o rock conheceu nas últimas décadas. Virgin Bride, faixa que ficou de fora de Like Swimming, é imperdível porque integra o que de melhor tinham os Morphine, incluindo um apurado humor negro. E, neste caso, também uma moral da história: carpe diem.

28 março 2007

Let the good times roll II

Durante anos a fio escutei este disco através de uma velha cassete que, com o passar dos anos, foi cedendo à idade até o som que conseguia reproduzir se transformar numa amálgama em que já dificilmente se conseguia distinguir a guitarra do violino. Até que um dia a fita se enrolou e lá se foi a possibilidade de escutar Full House, dos Fairport Convention, um dos grandes discos do folk-rock britânico do início dos anos 70. Não sendo um maníaco do som, gosto de ouvir tudo com nitidez. Por isso, quando me desloco a alguma loja, tradicional ou na Internet, procuro entre o fundo de catálogo que me interessa versões remasterizadas. Isto porque já enfiei alguns barretes com edições em CD de velhas gravações analógicas, feitas à pressa. Aqui há uns tempos embrenhei-me na notável discografia da banda de gente ilustre do folk como Dave Swarbrick ou Richard Thompson e descobri, com agrado, que Full House já tinha sido retirado das prateleiras da respectiva editora e honrado com uma nova versão que traz um som limpinho mas respeitador daquilo que eu recordava da edição original. Há pequenos prazeres que merecem o esforço de quem o pode fazer.

27 março 2007

A propósito de Peter Frampton

Alguém cá no prédio decidiu hoje bombardear a vizinhança com Baby, I Love Your Way, na versão de Peter Frampton, do histórico duplo ao vivo Frampton Comes Alive. Há muito tempo que não escutava o disco que, em meados dos anos 70, fez de Frampton um herói da guitarra, daqueles que, à época, os amantes de rock estavam sempre sequiosos de descobrir. A circunstância não foi suficiente para me levar a recuperar o disco para recordar as canções, os solos e a talk-box que deslumbraram milhões de adolescentes que fizeram de Frampton Comes Alive o álbum ao vivo mais vendido de sempre (não sei se o recorde se mantém ou se já terá sido ultrapassado). Mas deu-me vontade de escutar outro grande mago da guitarra. Optei por Steve Ray Vaughn e por um dos seus discos com os Double Trouble, Couldn’t Stand the Weather, que arranca com um dos riffs mais arrasadores que me já foram dados escutar. Trata-se de Scuttle Buttin’, cujo tema consiste numa frase atacada por Vaughn com a sua lendária rapidez e clareza. Não renego o passado, mas Steve Ray Vaughn é outra música.

26 março 2007

Let the good times roll

Este disco foi gravado em 1975 mas podia ter sido registado muitas décadas antes. Reúne dois nomes grandes da história do jazz que, por altura do registo desta sessão, eram já veteranos. Count Basie (piano e órgão) ia nos seus anos 70 e Zoot Sims (saxofone tenor) era cerca de vinte anos mais jovem. O repertório é clássico, recua até às décadas de 20 e 30 do século passado, e serve de base para um disco alegre, descontraído, sem outras pretensões que não as de proporcionar divertimento aos próprios músicos e aos destinatários do seu labor. Os temas são dançáveis, como era o jazz na época em que conquistou popularidade, e ao tempo em que este disco foi editado pareciam querer recordar às novas gerações como tudo tinha começado. Em Basie & Zoot é só isto que se passa, não há mais nada. E já é muito para dois improvisadores que, apesar da idade, ou talvez por isso, se mostram grande mestres na arte de semear bem-estar e swing em apenas oito lições.

25 março 2007

Uma banda gigante

Aqui está uma banda de rock que, tanto quanto sei, nunca se meteu em avarias com orquestras. Uma boa justificação é que não precisava de o fazer porque a originalidade e complexidade da sua música dispensava qualquer outra espécie de aparato que não fosse a que naturalmente se desprendia do talento dos seus elementos e da qualidade e espírito inovador da sua obra. Em causa estão os Gentle Giant, um dos grupos mais vanguardistas da era do chamdo rock progressivo, mas que nunca alcançou a popularidade de outras bandas do mesmo ramo, como os Genesis de Peter Gabriel ou os Yes. Em parte, isso deve-se à maior exigência da sua música. No seu período de maior fulgor, entre o final dos anos 60 e a primeira metade dos anos 70, os Gentle Giant surpreenderam com a sua capacidade de inovação, ao juntarem o rock com o jazz, a música erudita e, até, medieval, deixando desconcertado quem quer que, na época, julgasse que, no mundo do rock, os músicos conheciam três acordes e pouco mais. Antes de ceder à tentação de acrescentar audiências fazendo cedências na qualidade do seu trabalho, a banda produziu uma meia dúzia de álbuns geniais e ainda hoje merecedores desse qualificativo. Só para matar saudades, In a Glass House, com o seu célebre arranque feito à custa do ruído de vidros a serem quebrados, teve hoje direito a ser colocado a girar no leitor de CD.

23 março 2007

Não havia necessidade

Esta história de músicos de rock fazerem, aqui e ali, incursões por mundos que lhes são estranhos nem sempre dá bons resultados. Houve um tempo em que a obsessão pela conquista de respeitabilidade levou algumas bandas a gravaram discos com grandes orquestras sinfónicas, o que na maior parte das vezes se resumiu a um exercício de pretensiosismo bastante bacoco. A música tem estilos mas não deve ter fronteiras, sob pena de empobrecer os resultados. Mas daí a achar, por exemplo, que faz sentido alguém como Sting se meter, e afundar, numa tentativa de interpretar alguns temas do repertório de John Dowland, músico britânico que, pela época do Renascimento na Europa, compôs peças brilhantes para alaúde e voz, vai uma enorme distância. Pelo que me foi dado ver e ouvir num documentário sobre a gravação do disco em causa, em que, além da música de Dowland, Sting inclui versões de grandes êxitos da sua carreira acompanhado de alaúde, a aventura não correu da melhor forma. À voz do, de novo, líder dos The Police, faltam a profundidade e a emoção necessárias para expressar a melancolia da música de John Dowland. O disco nem sequer chega a ter graça, quando encarado como mera curiosidade. Posto isto, o que se deve fazer é escutar Dowland como ele merece ser descoberto. Um dos discos da obra integral para alaúde, executada por Paul O'Dette, é uma boa ideia. Quanto a Sting, não havia necessidade.

22 março 2007

Incompetência ou indiferença?

Não faço ideia se este concerto, no que toca a audiência, acabou por ser um sucesso ou um fracasso. Mas não tenho dúvida nenhuma em afirmar que, do ponto de vista musical, deve ter sido um evento de alto nível. É pena verificar que, conforme se pode ler no post "linkado" no início deste texto, há espectáculos de grandes músicos que, por má promoção ou pura indiferença, correm o risco de ser verdadeiros flops, ainda que se façam esforços à última hora para chamar gente que se disponha a presenciá-los. Se estivesse em Portugal, eu teria decerto ido ver e escutar Jason Moran. Como já aqui escrevi a propósito do seu mais recente álbum, Artist in Residence, acho que é um pianista excepcional e qualquer um dos seus álbuns merece ser conhecido e devidamente apreciado. Moran não só tem vindo a construir uma sólida carreira como instrumentista, como é um compositor dinâmico e inventivo. Entre os seus discos, Modernistic, em que o pianista se apresenta a sós com o seu piano, está entre os que me conquistaram mais intensamente. E basta ouvi-lo ainda que uma única vez para realizar que, se a apresentação de Jason Moran e da sua banda no início de Março, em Lisboa, não foi correspondida pelo público, ter-se-á cometido uma vergonhosa injustiça.

21 março 2007

Um serão com Bonnie "Prince" Billy

Comecei a levar mais a sério Bonnie "Prince" Billy quando surgiu o disco Superwolf, resultado de uma parceria com o guitarrista Matt Sweeney. Sou um apreciador tardio, portanto, mas neste campo da música como em muitos outros, é melhor conhecer com atraso do que nunca chegar a conhecer, em particular quando a música é de boa cepa. No seguimento do que escrevi no post anterior sobre os Iron & Wine, aqui está mais um exemplo sobre as boas perspectivas que se podem encontrar quando, hoje em dia, se olha para o panorama dos cantautores que se movem entre o country e a folk. Bonnie "Prince" Billy, ou Will Oldham, é um dos nomes incontornáveis actualmente nestas paisagens, como me é dado constatar agora. The Letting Go tem todos os ingredientes necessários para um disco adequado a um serão intimista. Guitarras acústicas e harmonias vocais que nos sopram suavemente nos ouvidos, de vez em quando apoiadas por orquestrações que não ferem a economia do conjunto, e eis mais um disco para saborear sem pressas.

20 março 2007

Eu ontem adormeci assim

Se há coisa que me agrada nos dias que correm é o facto de as possibilidades de escolha serem variadas quando se procura ouvir simples canções, tocadas em sossego numa guitarra acústica e cantadas sem pressas nem tensões. O estatuto de cantautor é muito cobiçado e esta competição tem revelado grandes talentos, que passaram das gravações caseiras para estúdios onde a pirotecnia tecnológica não conseguiu impor as suas leis. Os Iron & Wine, que no fundo são o nome de guerra de Sam Beam, são um dos casos mais notáveis. Desde que descobri este talentoso trovador que me tenho esforçado por estar a par daquilo que vai fazendo, sendo que o ritmo a que vai colocando novidades no mercado é semelhante à tranquilidade transmitida pelas suas canções. Our Endless Numbered Days é o segundo disco da "banda" e uma pequena pérola para qualquer amante de folk. Não há maus momentos neste CD, ainda que, no meu caso, tenha uma especial predilecção por Naked As We Came e Sodom, South Georgia.

19 março 2007

A montanha mágica

Para além do ritmo a que acrescenta novas peças à sua discografia, um dos aspectos que mais impressiona em Dave Douglas é a diversidade de referências que estão presentes na sua carreira. O trompetista está à vontade em qualquer ambiente, quer quando se lança no free e no vanguardismo, como nas ocasiões em que explora terrenos mais recuados mas sem perder o seu irresistível impulso para abrir caminhos diferentes daqueles que já foram percorridos. Da pop à folk, do cinema mudo à paisagem de montanha, que é a fonte de inspiração para o disco que motivou este texto, tudo parece servir de pretexto para Douglas fazer música. Em Mountain Passages, o desafio foi o de compor temas para o festival italiano I Suoni del Dolomitti, onde se realizou a estreia para uma audiência que, para ter o prazer de ver e escutar Dave Douglas e os restantes quatro elementos da sua banda, teve que palmilhar montanha acima já que a música se destinava a ser escutada a altitudes bem acima do nível do mar. A experiência deve ter sido inesquecível. Pelo seu carácter invulgar mas, sobretudo, pela magia de Douglas, um trompetista e compositor de largos recursos.

18 março 2007

Mais aventuras da dupla-maravilha

A parceria entre Pat Metheny e Brad Mehldau teve o seu primeiro fruto aqui há uns meses quando apareceu no mercado um disco homónimo, em que o predomínio ia para os temas tocados apenas pelo guitarrista e pelo pianista. Nesta segunda aventura discográfica destes dois soberbos melodistas, são as interpretações de temas originais em quarteto, com os contributos de Larry Grenedier e Jeff Ballard, respectivamente no contrabaixo e na bateria, que assumem o comando. Metheny é um compositor prolixo e neste disco, simplesmente intitulado Metheny Mehldau Quartet, é da sua lavra a maioria das faixas o que, logo à partida, faz recordar os trabalhos com o seu antigo quarteto, em que outra das personalidades fortes era o pianista Lyle Mays. As semelhanças são evidentes mas Mehldau afasta-se mais da pauta, o que introduz alguns factores de surpresa no estilo de composição característica de Pat Metheny, identificável a quilómetros de distância. Quem conheça bem a obra do guitarrista, perceberá que o contributo de Brad Mehldau para a música deste quarteto é o detalhe que faz a diferença em relação ao que está para trás.

16 março 2007

O reino do trompete

Roy Campbell foi discípulo de Lee Morgan e New Kingdom abre com um tema que é uma homenagem ao grande trompetista que nos anos 60 conquistou uma justa fama, legando para a posteridade grandes clássicos como The Sidewinder. Tocando em sexteto e em quinteto, Campbell espalha a sua habilidade por este disco e honra de forma mais do que digna os pergaminhos do seu mestre. Nos oito temas, o palco pertence quase por inteiro à forma pujante como ataca o trompete mas os dois saxofonistas que integram a banda, Zane Massey, no sax tenor, e Ricardo Strobert, no sax alto e na flauta, dão uma luta apertada ao líder. É em redor destes três instrumentistas que gira toda a excelente música que preenche New Kingdom, lançado em 1992, esculpida entre o vanguardismo e o post-bop pelo próprio Campbell, por Massey e ainda através de dois temas de William Parker, que aqui assegura o contrabaixo.

15 março 2007

Air fresco

Como sucede com dezenas de outros projectos nos domínios da pop, seja ela electrónica ou de outra natureza, a repetição de fórmulas que conseguiram conquistar uma legião de apreciadores é, muitas vezes, o primeiro passo para o esgotamento. Os Air alcançaram a fama através de Moon Safari e passaram a constituir uma referência, dando origem a uma onda de imitadores. Mantendo-se fiéis às suas origens, a dupla francesa conseguiu nos discos seguintes manter a personalidade mas trabalhando a composição e os arranjos, tornando a sua música mais sofisticada e preservando a simplicidade e a elegância. Não inventaram nada de muito novo mas foram acrescentando uma mão cheia de boas canções ao seu espólio. O novo disco, Pocket Symphony, testemunha um passo em frente dos Air em termos de maturidade. É um álbum sereno e fresco, muito apoiado em instrumetos acústicos, com destaque para as guitarras e o piano. Trata-se, para já, de um dos bons acontecimentos do ano na pop.

14 março 2007

Um inovador clássico

É algo que considero inexplicável. Mas a verdade é que, para muita gente, Wynton Marsalis é um nome apenas tolerado quando se discutem os grandes nomes do jazz dos últimos 30 anos. Uma das acusações frequentes refere que Marsalis se limitou a revolver os terrenos mais clássicos e que, embora seja um exímio executante do trompete, pouca inovação trouxe através da sua obra. Em boa parte, a crítica é injusta. Primeiro, porque tenta menorizar uma discografia rica e impossível de ignorar po quem quer que goste de música. Em segundo, porque se é notório o pendor de Wynton Marsalis para se inspirar nas grandes tradições, de Nova Orleães ao bop, seria quase patético recusar reconhecer as suas elevadas capacidades como instrumentista e compositor que o tornaram responsável pela renovação do interesse pelo jazz nos anos 80. Marsalis pode ser encaixado no mainstream mas dizer apenas isto é redutor. Escute-se, por exemplo, o novo disco, From the Plantation to the Penitentiary, em que se respira modernidade, através da fusão entre jazz tradicional, bop, soul, gospel, blues e rap, para se perceber que o trompetista se mantém em plena forma e dotado de um espírito de descoberta que só por manifesta má vontade se poderá negar.

13 março 2007

Discos para uma viagem X

Com mais de vinte anos de intensa actividade, o trio de Keith Jarrett, com Jack DeJonhette e Gary Peacock, é já uma instituição do jazz. O entendimento entre os três músicos é praticamente perfeito, sob a liderança de um pianista inventivo, virtuoso e exigente na sua arte. O habitat natural destas três personalidades são as actuações ao vivo. E, para alegria dos seguidores incondicionais das vigorosas interpretações de clássicos do cancionaiero americano que animam uma boa parte do repertório, o trio de Keith Jarrett tem disponibilizado uma apreciável quantidade de gravações captadas em concerto, numa vasta obra que evidencia uma qualidade absolutamente invulgar. Um dos meus discos favoritos é este The Cure, não só pelas leituras efectuadas a sete standards mas porque o tema que acaba por lhe dar o título é uma daquelas improvisações puras em que Jarrett se embrenha arrastando os seus companheiros através da força das notas que extrai do piano. Para completar esta pequena banda sonora para uma viagem, e como contraponto a Mozart, aqui está um disco liderado por um génio contemporâneo.

12 março 2007

Discos para uma viagem IX

Uma surtida até à Europa Central que inclua uma visita a Salzburgo, aconselha a que se preveja uma banda sonora com uma ou outra obra de Mozart. O compositor nasceu na cidade e ali viveu até aos 24 anos. E este facto, como é óbvio, é devidamente explorado para extorquir algum dinheiro adicional aos turistas, sendo, a par do filme Música no Coração, uma das grandes atracções locais. Entre a obra deste génio da segunda metade do século XVIII há, evidentemente, muitas boas opções. Desta vez, entre os concertos para violino e os concertos para piano, a hesitação acabou por levar a outra peça incontornável: o irresistível concerto para clarinete. É bem capaz de haver outras versões tão boas ou até melhores, mas a que eu possuo e costumo escutar com grande satisfação é da da Academy of Ancient Music, dirigida por Christopher Hogwood, com Antony Pay como solista. Cumpriu bem o seu papel durante um passeio pelas ruas estreias do centro histórico da cidade austríaca.

11 março 2007

Discos para uma viagem VIII

Pode tratar-se de um terreno menor e até desprezível para os puristas, mas a verdade é que anda por aí óptimo material que junta bossa, jazz e pop e que se consome com o mesmo prazer que um cocktail fresco e exótico pode proporcionar num fim de tarde de Verão. Este disco que descobri completamente ao calhas é um desses casos. Tem bons temas, cantados por boas vozes, com instrumentistas que não andam por aqui para mostrarem como são geniais mas simplesmente para nos porem bem dispostos através da sua eficácia. Chama-se The Invisible Session, acho que vem de Itália, de onde provém um os mestres neste ofício, de nome Nicola Conte, e cumpre na perfeição os objectivos para que foi feito. Não há nada de inesperadamente novo, mas apenas música feita com alegria que contagia e que faz mexer os pés. Uma brisa agradável para quem demande terras frias.

09 março 2007

Discos para uma viagem VII

Atrás de um acaba por vir outro. Eis mais um disco de excelentes canções para se fazer uma pausa quando se arranja tempo para processar informação e reflectir sobre como classificá-la e arrumá-la, porque é isso que acaba por constituir o processo de enriquecimento inerente ao acto de viajar por sítios onde nunca se esteve. Não conheço qualquer outro disco dos Sun Kil Moon, o que até nem parece muito grave tendo em conta que o contacto com Ghosts of the Great Highway me garante a familiaridade com metade daquilo que constitui a discografia oficial da banda, isto é, do trabalho de Mark Kozelek, antigo membro dos Red House Painters, sob este novo nome. Por estes lados, há muita guitarra acústica a espalhar acordes e dedilhados melancólicos, ajudadas de vez em quando por uma orquestração que acrescenta espessura às canções. Gentle Moon é para escutar até fartar.

08 março 2007

Discos para uma viagem VI

Quando se vai de viagem convém ter na manga alguns álbuns com música simples, que não exija grande concentração, no meio de uma bagagem suficientemente ecléctica. Há muito por onde escolher, mas também há que fazer opções. Andrew Bird, que vai estar em Portugal daqui por umas semanas para alguns concertos, inscreve-se bem entre as possibilidades quando chega a vez de meter na mala canções suaves, melodiosas, apropriadas para uma pessoa se recostar enquanto deixa o tempo passar. Andrew Bird & The Mysterious Production of Eggs foi destacado para a missão específica de fazer companhia nos momentos de distensão. Inclui Sovay que, tanto quanto me consigo aperceber, vai na sua segunda versão pela mão de Bird, sendo que prefiro esta à inicial que figura num disco anterior deste violinista que se dedicou à pop-folk. Mas há mais: Measuring Cups, Masterfade ou Tables and Chairs, por exemplo.

07 março 2007

Discos para uma viagem V

Aqui está um disco que vale por uma canção que para uns é um hino e para outros é um mero objecto de ódio, muitas vezes de estimação. Deparei-me com The Voice of Scott McKenzie numa loja em Munique, quando procurava, sem qualquer fim pré-definido, algum disco que merecesse ser levado até à caixa. Peguei nele por breves segundos enquanto mergulhava numa certa melancolia e decidi que era tempo de o juntar à colecção, depois de o ter escutado com grande frequência na versão 45 rotações quando os anos 60 do século passado estavam prestes a despedir-se, dando lugar à década seguinte. O tema que constitui o isco deste CD é, obviamente, San Francisco, faixa com lugar assegurado em qualquer playlist destinada a conquistar os corações nostálgicos. Gosto da canção, pronto, e esta versão remasterizada dá-lhe um brilho e definição que o velho single nunca teve. Ainda não escutei os restantes temas do disco. Mas que interessa isso?

06 março 2007

Discos para uma viagem IV

Há locais muito improváveis para se dar de caras com músicos e música que nunca se tenha escutado. O som ambiente de uma sala de jantar onde paulatinamente se toma o pequeno-almoço, num pequeno hotel perdido algures na Europa Central, é um desses sítios. Mas um melómano atento tem que estar preparado para tudo e deve manter os ouvidos bem abertos. Entre um gole de chá verde e uma torrada, comecei a dar atenção às notas de piano que saíam dos altifalantes e que acolhiam os escassos hóspedes presentes para cumprirem a primeira etapa gastronómica do dia. Foi desta forma inesperada que conheci The Time, obra de um trio que inclui o pianista Leszek Mozdzer, o contrabaixista Lars Danielsson, uma figura com larga experiência no ofício, e o percussionista Zohar Fresco. O que se escuta neste disco é algo que se situa entre a clássica, o jazz e o folk leste-europeu. E tudo isto tocado com grande sabedoria e emoção. As iguarias disponíveis eram modestas mas este foi um dos melhores pequenos-almoços da minha vida.

05 março 2007

Discos para uma viagem III

Por vezes, o jazz europeu editado pela ECM tende a repetir-se a si próprio. Antes de se pegar num novo disco saído do labor desta casa, espera-se música repousada, de tal forma que até se imagina que os respectivos executantes calçaram as pantufas para fazer a gravação. Se a caricatura se aplica a algumas obras, seria no mínimo injusto tomá-la como uma verdade absoluta. É que há discos que, embora não fugindo de uma certa tendência das edições da ECM para a contemplação, revelam uma apurada sensibilidade por parte de quem os protagoniza, revelando uma enorme arte na conjugação dos sons e do silêncio, afinal de contas um dos segredos de muito boa música. Tati, de Enrico Rava, um veterano do trompete no panorama europeu, é um desses discos em que o casamento entre as notas e os intervalos produz um resultado feliz. Birdsong, por exemplo, é um tema que faz uma parceria perfeita quando acompanhado de uma paisagem de montanha que vai desfilando, imponente, perante o deslumbramento do viajante.

04 março 2007

Discos para uma viagem II

Para servir de companhia numa viagem, nada mais adequado do que incluir na bagagem um disco em que os sucessivos temas são inspirados em diversas cidades do Mundo, incluindo Lisboa. E foi por causa disto que Cities and Desire, de David Binney, saltou do seu suporte em CD para o leitor de MP3, com o objectivo de preencher os tempos de trânsito de umas merecidas férias. Binney é um nome com prestígio consolidado no jazz actual e, mais especificamente, no que respeita ao manuseamento do saxofone alto. Sendo, também, um compositor com amplas provas dadas, acaba por ser fácil encontrar obras credoras de atenção entre a sua discografia, que leva já um pouco mais de década e meia de actividade. Nesta gravação, em quinteto e onde os temas são na totalidade da autoria de David Binney, os argumentos favoráveis são reforçados pela presença de Mark Turner no saxofone tenor. Los Angeles, faixa em que Binney e Turner se dedicam a um empolgante despique, está entre as mais fortes de todo o CD.

03 março 2007

Discos para uma viagem I

Bill Frisell já aqui foi citado em ocasiões anteriores, tratando-se de um dos guitarristas favoritos da casa. Nos últimos anos, a maior parte do trabalho de Frisell tem-se afastado do jazz para se concentrar nas tradições sonoras populares dos Estados Unidos da América, desde os blues ao folk e à country, integrando, por vezes, elementos de outras paragens mais distantes, como a África e o Oriente. É um género de trilho que tem deixado para trás qualquer pretensão de demonstrar as suas elevadas qualidades como instrumentista, privilegiando a sugestão de ambientes e uma forte aposta na composição e em colectivos ecléticos que reunem músicos de escolas bem diversas. Os frutos desta opção têm sido gratificantes, como é o caso do álbum The Intercontinentals, onde desfilam influências variadas que acabam por, em conjunto, resultar num disco com um elevado poder de atracção. Estando em vésperas de ir de viagem, andei por aqui a vasculhar a colecção de discos com o objectivo de me apetrechar para longas horas de contemplação da paisagem através das janelas do comboio. The Intercontinentals foi o primeiro eleito.

02 março 2007

Cristo, segundo Rickie Lee Jones

Com Evening of My Best Day, Rickie Lee Jones fez um dos grandes discos da sua carreira, interrompendo uma fase menos estimulante do seu trabalho, por vezes bastante maçadora até, que se prolongou praticamente desde a edição de Flying Cowboys, quando os anos 80 se preparavam para chegar ao fim. Passaram, entretanto, quatro anos de espera até voltar a haver novidades de Jones. E estas chegaram através de The Sermon on Exposition Boulevard, um disco que surgiu a partir de um convite do fotógrafo e escritor Lee Cantelon para que Rickie Lee Jones lesse, sobre uma "banda sonora", as palavras de Cristo reunidas no livro The Words (ler mais informação aqui e aqui). O projecto acabou por entusiasmar Jones e vários temas foram gravados, resultando no disco em causa, sendo alguns simplesmente primeiros takes improvisados. Este é um dos pontos de interesse de The Sermon on Exposition Boulevard. O outro está na circunstância de o álbum apresentar uma mão cheia de boas canções, como Gethsemane, Falling Up, Lamp of the Body, Elvis Cadillac ou a instrumental Road to Emmaus, todas elas desprovidas de grandes efeitos de produção, soando cruas e genuínas, em contraste com aquilo que sucede noutras obras anteriores de Rickie Lee Jones, cuidadosamente polidas. Este é um regresso que confirma Jones num pico de inspiração.

01 março 2007

A Oeste algo de novo

Comecei a dar mais atenção a Lucinda Williams quando da edição de Car Wheels on a Gravel Road. Não sendo um grande apreciador de country puro e duro e da estética que lhe está associada, escutei o álbum e gostei de uma ou outra canção, com destaque para a que dá o título a este disco. Mais tarde, aderi convictamente ao dupo álbum Live @ the Fillmore, em que os temas surgem mais rugosos, e "roqueiros", em relação à limpidez tradicional que caracteiza o estilo em causa, que se trate de intérpretes masculinos ou femininos. Este texto, no entanto, não se justifica por qualquer dos dois discos mencionados, mas porque acaba de surgir por aí West, a mais recente peça na discografia de Williams. Posso estar a cometer algum erro de avaliação. Confesso não conhecer a fundo edições anteriores de Lucinda Williams, mas o facto é que acho este novo álbum muitíssimo interessante e um dos motivos está no facto de a voz da cantora e autora se manter num registo semelhante ao da citada gravação ao vivo, acabando por se tratar de uma boa colecção de temas que giram em torno do country-rock que gente como Neil Young ajudou a consolidar. Um disco a escutar.